UC Berkeley Press Release

Reportagem

edição 69 - Fevereiro 2008

Estimulação cerebral profunda, realidade por trás da ficção

Implante de eletrodos tem sucesso no tratamento de depressão refratária

por Edson Amâncio

© COLUMBIA TRI STAR/ALBUM - LATINSTOCK

EM JOHNNY MNEMONIC, Keanu Reeves recebe um chip de memória no cérebro

No filme Johnny Mnemonic, o diretor Robert Longo vai ao limite da ficção científica ao colocar um chip de prodigiosa memória no cérebro do personagem principal, representado por Keanu Reeves. O espectador fica com a nítida sensação de que num futuro próximo a informação estará disponível, transportada de um lugar a outro no cérebro de ciborgues mensageiros. O chip pode transportar uma quantidade quase infinita de dados plugando um pino no orifício de um implante eletrônico colocado bem na região occipital. Ficção, claro. Mas estaremos tão distantes assim desse tipo de ousadia ficcional?

Recentemente Helen Mayberg e Andrés Lozano, pesquisadores da University of Toronto, publicaram o resultado de uma neurocirurgia para tratar depressão refratária que nos faz pensar na realidade de mãos dadas com a ficção. Há pouco mais de uma década seria fantasioso imaginar que o desenvolvimento tecnológico pudesse trazer uma revolução na medicina da magnitude como já podemos testemunhar. É possível que, até o final da década, situações como a vivida pelo ciborgue Johnny Mnemonic pareçam infantis, tal a velocidade, freqüência e audácia com que a tecnologia é aplicada às neurociências.

REPRODUÇÃO

ARCO ESTEREOTÁXICO, colocado sobre a cabeça para o implante do eletrodo. Um software calcula o local exato de sua introdução

Os dois pesquisadores e sua equipe conseguiram dramática remissão dos sintomas da depressão em pacientes refratários a todas as modalidades de tratamento disponíveis até aquela data. Eletrodos de estimulação cerebral profunda (deep brain stimulation, DBS, em inglês) foram inicialmente implantados no cérebro de seis pacientes, numa área tão minúscula quanto um grão de ervilha. As bases científicas para essa operação vieram da análise de imagens por tomografia por emissão de pósitrons (PET). Os registros revelaram hipermetabolismo numa pequena área da porção anterior do giro cíngulo e uma notável redução do metabolismo cerebral no córtex pré-frontal dorsolateral. O desenvolvimento dessa técnica foi também estimulado pelo fato de que nos pacientes com depressão grave que se beneficiam do tratamento medicamentoso as imagens de PET revelam uma homogeneização do metabolismo nas áreas referidas. É como se a ingestão de um antidepressivo com propriedades de repor determinados neurotransmissores como serotonina ou noradrenalina restabelecesse a função das áreas envolvidas resultando na melhora da depressão.

Por outro lado, alguns pacientes não conseguem o mesmo resultado; são portadores de depressão refratária. A maioria das pessoas que sofrem de depressão pode se beneficiar do tratamento medicamentoso associado ou não a outras opções terapêuticas como psicoterapia, eletroconvulsoterapia (ECT) ou estimulação magnética transcraniana (EMTC). Porém, cerca de 20% deles não conseguem resultados satisfatórios com nenhuma dessas alternativas isoladas ou associadas.

ACERVO DO AUTOR

OS PESQUISADORES Andrés Lozano e Helen Mayberg, da University of Toronto, conseguiram uma diminuição dramática dos sintomas da depressão refratária nos pacientes que passaram pelo implante de eletrodos no cérebro

Há vários indícios de que a depressão não seja um transtorno localizado numa única região do encéfalo ou associada a um único neurotransmissor. No entanto, os verdadeiros mecanismos para explicar a real disfunção que ocorre no cérebro de pessoas com depressão não são completamente conhecidos. A hipótese mais aceita é que as causas sejam multifatoriais. Certamente vulnerabilidade genética, transtornos do desenvolvimento cerebral e fatores estressores estão entre as causas, cada um deles com uma fatia de responsabilidade na gênese do transtorno. As diferentes modalidades de tratamento para pacientes depressivos visam modulação neuronal no sistema límbico-cortical, onde diferentes modos de tratamento modulam alvos regionais específicos, resultando numa variedade de mudanças químicas que terminam por restabelecer o estado de humor normal.

A Região da Gênese da Depressão

Estudos de neuroimagem funcional têm tido importante papel na caracterização dessas vias límbico-corticais. As pesquisas realizadas por Mayberg e seu grupo demonstraram consistente envolvimento de uma região específica do sistema límbico na gênese da depressão: uma pequena área conhecida como cíngulo subgenual, ou área 25 de Broca (Cg25). A hipótese aventada por Mayberg foi corroborada pelo fato de que há nítida redução da atividade metabólica nessa área quando pacientes com depressão obtêm melhora clínica ao serem tratados com antidepressivos. Esse fato sugere a importância da região na modulação negativa do humor. Antidepressivos que aumentam a disponibilidade de serotonina (ISRS) ou noradrenalina (ISRN), bem como outras variedades de antidepressivos e mesmo ECT e EMTC produzem esse tipo de alteração metabólica nessa área, resultando em alívio da depressão. A participação do cíngulo subgenual na vasta gama de sintomas que acompanham a depressão pode ser inferida também pelo fato de ela ter conexões com o tronco encefálico, hipotálamo e ínsula, regiões sabidamente envolvidas com distúrbios da regulação circadiana associados à depressão: sono, apetite, libido, alterações neuroendócrinas. Por outro lado, a região Cg25 recebe impulsos provenientes do córtex orbitofrontal, do córtex pré-frontal medial, e várias partes do córtex do giro cíngulo anterior e posterior, todos envolvidos com a manutenção do sistema nervoso autônomo e de homeostase, os quais influenciam vários aspectos do aprendizado, da memória, da libido, da motivação e recompensa – comportamentos alterados em depressivos.

DIVULGAÇÃO

AS IMAGENS DE RAIOS X mostram o eletrodo encefálico implantado. Ele é introduzido lentamente até a região Cg25 e então conectado a um gerador externo que emite estímulos de alta freqüência

Implante de Eletrodos para Parkinson

Alguns conhecimentos nessa área foram descobertas casuais. A primeira cirurgia para implante de eletrodos foi realizada em pacientes com doença de Parkinson há mais de uma década. Em 1987, Alim-Louis Benabid, da Universidade de Grenoble, França, tratou com sucesso pessoas com doença de Parkinson com DBS. Desde então, centenas de pacientes se beneficiaram dessa técnica. Em 1997 um grupo de pesquisadores comandados por Yves Agid e Luc Mallet, do complexo hospitalar Pitié-Salpêtrière, em Paris, relatou alívio em sintomas de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) em dois pacientes submetidos à neuroestimulação de uma região conhecida por núcleo subtalâmico. Área que, uma vez estimulada, alivia os sintomas da doença de Parkinson como rigidez, tremor e acinesia. Os autores observaram que ambos os pacientes operados com estimulação do núcleo subtalâmico tiveram melhora nos sintomas da doença de Parkinson e se beneficiaram com redução dos sintomas de TOC que coincidentemente sofriam.

Dois anos depois dessa cirurgia, Boulos-Paul Bejjani, Phillippe Cornu e Yves Agid e colaboradores em Paris induziram depressão aguda numa paciente com doença de Parkinson ao tentar implantar DBS no núcleo subtalâmico. O eletrodo implantado avançou acidentalmente alguns milímetros e estimulou a substância negra adjacente desencadeando uma crise aguda de depressão. A paciente autorizou os pesquisadores a testarem o papel da estimulação na origem da súbita depressão que ela desenvolveu. O gerador de pulsos que emite alta freqüência para o eletrodo foi acionado seis vezes sem que a paciente soubesse se a estimulação era falsa ou verdadeira. Em todas as vezes que o gerador era ligado ela desenvolvia uma crise aguda de depressão que era interrompida sempre que o gerador era desligado. E em todas as falsas estimulações a paciente não manifestou alteração do humor.

ERIKA ONODERA

Alta freqüência - O GERADOR EXTERNO emite estímulos mínimos de alta freqüência para a região Cg25

Técnica é Relativamente Simples

Esses achados fortuitos e os recentes avanços no tratamento cirúrgico da doença de Parkinson também forneceram subsídios para a estimulação de áreas específicas na tentativa de aliviar sintomas de depressão. Vários autores demonstraram que a estimulação cerebral profunda em áreas sabidamente hiperativas produz pronunciados benefícios clínicos aos pacientes. Mayberg e seu grupo já haviam demonstrado que a DBS nos gânglios basais produz alterações na atividade neuronal local e remota, a qual pode ser demonstrada por exames de neuroimagem.

Com base nessas informações os autores formularam a hipótese de que a estimulação da região Cg25 poderia trazer benefícios clínicos a pessoas com depressão refratária. Propuseram, dessa forma, o implante de eletrodos de estimulação cerebral profunda no giro cíngulo. A cirurgia realizada em 2005 pelo professor Lozano em seis pacientes suplantou expectativas. Quase todos eles melhoraram.

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CONTROLE RADIOSCÓPICO de eletrodo uni e bilateral: são imagens de raios X do momento em que o eletrodo se encontra no alvo. Trata-se de uma checagem antes de começar o processo de estimulação

A técnica de implante do eletrodo é relativamente simples e amplamente usada por neurocirurgiões funcionais quando operam pacientes com doença de Parkinson. A diferença entre uma operação e outra consiste na escolha do alvo. Na doença de Parkinson o alvo da estimulação em geral é a região subtalâmica, enquanto na depressão, o giro cíngulo. Cada vez mais outras áreas têm sido estimuladas para tratar diversas condições clínicas (ver quadro).

O procedimento consiste em fixar um arco estereotáxico metálico em torno da cabeça do paciente acordado sob anestesia local. A seguir o paciente é colocado no aparelho de RNM e imagens do seu cérebro são tomadas com o arco fixado. A partir daí um software especialmente desenvolvido para esse fim calcula o alvo exato onde será introduzido o eletrodo. Em seguida o paciente é conduzido ao centro cirúrgico. Com as coordenadas devidamente calculadas o cirurgião aplica uma injeção de anestésico no local do crânio que será perfurado. Em seguida faz-se uma incisão no couro cabeludo de 5 cm de extensão com bisturi. O osso é exposto e uma broca automática perfura-o até atingir a dura-máter que recobre o cérebro. Ela é então coagulada para evitar sangramento. Uma lâmina perfura a membrana e uma extensão não superior a 0,5 cm de córtex se torna exposta. Lentamente o eletrodo é empurrado para dentro do cérebro até alcançar a região Cg25. Uma vez atingido o alvo, o eletrodo é fixado no crânio e inicia-se a fase de testes. Em seguida um gerador externo é conectado ao eletrodo emitindo estímulos mínimos de alta freqüência. É o momento em que a ficção invade o mundo real. A paciente que permaneceu acordada durante todo o tempo irrompe com uma exclamação espantosa.

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AS IMAGENS RADIOGRÁFICAS mostram um eletrodo epidural inserido. Após o implante, o paciente passa por uma série de testes para avaliar a eficiência dos estímulos e também a possibilidade de efeito placebo

Mudança Súbita de Humor

“Vejo as cores com maior nitidez! Tenho alegria de viver. Quero colaborar com vocês. Estou me sentindo bem. Quero voltar à vida!” A equipe de psicólogos e psiquiatras inicia um interrogatório breve, porém suficiente para caracterizar a súbita mudança de humor. As respostas que ela dá são convincentes de que se sente verdadeiramente bem. Alguns testes para avaliar a possibilidade de efeito placebo também são realizados. Sem que a paciente saiba, estímulos falsos foram aplicados e não trouxeram nenhuma mudança de comportamento, o que só ocorria quando o eletrodo era estimulado, descartando-se, portanto, a possibilidade de melhora devida a efeito placebo. Não há muito tempo para continuar com perguntas. Mais uma vez os parâmetros são conferidos. Os eletrodos estão nos devidos lugares. Somente agora a paciente é submetida à anestesia geral. A parafernália sobre a sua cabeça é removida, ficando apenas o eletrodo devidamente afixado ao crânio. Uma pequena incisão abaixo da sua clavícula é realizada. Os cabos dos eletrodos são empurrados para debaixo da sua pele até serem conectados ao gerador de pulsos com pouco mais de 5 cm de diâmetro, que permanecerá oculto debaixo da pele do peito, após uma rápida sutura. Não há mais vestígio de cirurgia. A partir de então a paciente passará a viver com um gerador estimulando continuamente seu cérebro. Um ciborgue real, mas feliz, livre de uma depressão que parecia incurável. Não é ficção. No dia 5 de outubro de 2007, numa sexta-feira excepcionalmente fria em Toronto, assisti a um procedimento desses no Western Hospital a convite do professor Lozano. Ele e sua equipe, que inclui um jovem pesquisador brasileiro há 8 anos na universidade, Clement Hamani, realizavam o 20o caso de DBS para tratamento de depressão refratária no Canadá.

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Onde fica a Cg25 - O CÍNGULO SUBGENUAL, ou área 25 de Broca (Cg 25), tem atividade reduzida no tratamento com antidepressivos

Enfim, o Alívio

Numa ampla ante-sala do centro cirúrgico, abarrotada de computadores, as paredes brancas com dezenas de luminárias penduradas no teto, armários brancos repletos de caixas de instrumentos cirúrgicos, enfermeiras, neurocirurgiões, psiquiatras, neurologistas e neuropsicólogos, todos vestidos de branco, estão prestes a mergulhar na vida privada daquela professora de 59 anos. Ouvi-la falar com resignação do significado da depressão na sua vida foi um instante de profundo e respeitoso silêncio. A luminosidade dos seus olhos, que em algum momento do passado estivera presente, se dissipara por completo. A voz sem nenhuma entonação mencionava palavras como “vazio”, “alheamento”, “apatia”, “desinteresse”. O simples ato de se levantar da cama exigia dela um esforço extraordinário, alimentar-se era um ato automático, combustível que os familiares lhe impunham, e a idéia permanente de dar cabo da própria vida dominava seus pensamentos.

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Áreas de estimulação - A depressão não é a única doença que pode ser combatida com o estímulo de uma área cerebral específica. Veja outras regiões do cérebro relacionadas a determinadas enfermidades.

O que significava para ela estar ali, respondendo a perguntas de estranhos? Reagia como um autômato. Que resultado esperava da operação? Não lhe parecia uma idéia promissora? Que resultado! Vocês são mesmo persistentes! , exclamou com um traço de ironia num determinado momento. Acreditam mesmo que eu saia do fundo do poço onde estou mergulhada?

Havia décadas ela sofria de depressão, sem que nenhum dos tratamentos anteriormente utilizados conseguisse retirá-la do redemoinho. Nada pôde remover a nuvem negra sobre o seu ser, como ela se expressou minutos antes de ter o cérebro implantado por eletrodos de estimulação profunda.

Não se transformou exatamente num Johnny Mnemonic, mas sentiu alívio como nenhum dos tratamentos anteriormente propostos for a capaz. Tudo indica que a operação fora bem-sucedida. De agora em diante talvez possa alcançar o equilíbrio e a paz que procurou durante tantos anos.

 

CONCEITOS-CHAVE

- Cientistas desenvolveram uma neurocirurgia para tratar depressão refratária, por meio do implante de eletrodos de estimulação cerebral profunda.

- Os pesquisadores descobriram a área do cérebro envolvida na gênese da depressão: o cíngulo subgenual, ou Cg25.

- O eletrodo é inserido no local determinado por um software específico. O paciente então passa a viver com um gerador externo que estimula continuamente seu cérebro.

Edson Amâncio é neurocirurgião. Autor de O homem que fazia chover e outras histórias inventadas pela mente (Barcarolla, 2006).

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