Mais de 120 milhões de pessoas no mundo sofrem de depressão, a segunda causa de incapacitação para o trabalho, segundo a Organização Mundial de Saúde. É uma doença considerada curável e os medicamentos anti-depressivos, associados a algumas formas de psicoterapia, podem ajudar no tratamento de 60 a 80% dos pacientes. Para os 40 a 20% restantes as opções são escassas. Até há bem pouco tempo, os pacientes refratários aos medicamentos contavam apenas com a terapia eletroconvulsiva - a estigmatizada e vulgarmente conhecida terapia de eletrochoque. Desde meados da década de 1990, no entanto, uma nova terapia, a estimulação magnética transcraniana – EMTr (ou TMS da sigla em inglês transcranial magnetic stimulation ), tem mostrado resultados esperançosos para o tratamento da doença, e foi aprovada oficialmente para uso clínico em países como Canadá, Austrália, Israel e Alemanha. No Brasil ela ainda está em estágio experimental *APROVADA EM 2006 PARA USO CLÍNICO , como também nos EUA, onde a Food and Drug Administration (FDA), órgão responsável pela liberação de remédios e tratamentos médicos, considera que não há um número de experimentos suficiente para comprovar sua eficácia. Alguns pesquisadores consideram que o principal empecilho para sua aprovação é a inexistência de uma indústria comercial capaz de promovê-la e de enfrentar a pressão e o poder das empresas farmacêuticas fabricantes dos antidepressivos.
Uma sessão de EMT
No início da noite de uma segunda-feira, após um dia normal de trabalho, a paciente - vou chamá-la de Maria - enfrentou o trânsito paulistano para se dirigir à clínica do psiquiatra Roni Broder Cohen, e submeter-se a mais uma sessão de estimulação magnética transcraniana. Ele é um dos pioneiros da técnica no Brasil. Maria tem 43 anos e iniciou o tratamento em 2001 após sete anos de inúmeras tentativas para tratar a doença com o uso de remédios e da psicoterapia. “Eu precisava tomar doses muito altas de antidepressivos, de vários tipos combinados, e mesmo assim a melhora durava pouco tempo. Aí era preciso trocar de remédio ou aumentar as doses ou adicionar novas drogas”. Os efeitos colaterais dos medicamentos, que “estavam insuportáveis”, também contribuíram para sua decisão de tentar uma nova terapia, mesmo que experimental. “Afinal cada troca de remédio era também um experimento, sem nenhuma certeza da eficácia dos novos remédios que eu tomava”, diz ela. Durante os primeiros seis meses de EMT, as medicações foram sendo reduzidas e no início de 2002 ela “estava livre” de todas elas. Desde então, as sessões de EMT fazem parte da vida de Maria. Atualmente, uma vez por semana, ela chega ao consultório, senta-se confortavelmente numa poltrona reclinável e veste uma touca como as usadas em aulas de natação, onde estão assinalados, com caneta, o contorno de suas orelhas e as áreas de seu cérebro que serão estimuladas magneticamente. A touca é colocada com cuidado - o contorno das orelhas serve como guia para sua correta posição na cabeça. Sobre o lado direito, acima e à frente da orelha, um ponto na touca assinala a área responsável pelo movimento da mão esquerda, que faz parte do córtex motor, uma área mais ampla relacionada aos movimentos. Mais para frente, outro ponto assinala a área que será estimulada para tratar a depressão, chamada córtex pré-frontal dorso lateral direito. A localização exata dessas áreas varia um pouco de pessoa para pessoa e são determinadas para cada paciente nas primeiras sessões do tratamento. Atrás da cadeira onde Maria está sentada há um aparelho, o neuroestimulador magnético, de onde sai um cabo que leva na ponta uma espécie de colher em forma de oito. Essa “colher” consiste de duas bobinas, ou seja, duas espirais de cobre firmemente enroladas, recobertas por um molde de plástico. Quando atravessadas por descargas de corrente elétrica produzidas no neuroestimulador, as bobinas geram um campo magnético de brevíssima duração, menor que um milesegundo. Inicialmente, o médico posicionou a “colher” sobre a área motora assinalada no lado direito da touca de Maria e produziu um pulso magnético cuja intensidade estava registrada no visor do neuroestimulador. A mão de Maria contraiu levemente, indicando que a touca estava colocada corretamente. O médico continuou aplicando pulsos magnéticos com intensidade cada vez menor até que o movimento da mão de Maria ficou imperceptível. A intensidade do campo magnético necessária para produzir esses movimentos involuntários, chamada limiar motor, é usada como padrão para estimular a área relacionada à depressão. Como varia consideravelmente entre as pessoas, e mesmo de um dia para outro numa mesma pessoa, ela deve ser estabelecida a cada sessão. O médico repetiu, então, o procedimento para a área motora do lado esquerdo e, determinada a intensidade que a aplicação deveria ter naquele dia, posicionou a “colher” sobre a área relacionada à depressão. Maria ficou ali, acordada, relaxada e sem sentir nenhum incômodo, por cerca de 40 minutos, recebendo pulsos de baixa freqüência, isto é, um pulso a cada segundo. Ao terminar a sessão, Maria levantou-se, conversou um pouco com o médico e sua assistente. Aparentava estar muito relaxada, talvez um pouco sonolenta; pegou sua bolsa e o caminho de casa, normalmente vai de ônibus.
Por dentro da EMT
A EMT baseia-se no fenômeno bastante conhecido do eletromagnetismo, descrito por Faraday em 1831, quando demonstrou que cargas elétricas em movimento eram capazes de gerar um campo magnético, e que a variação desse campo induz a formação de corrente elétrica em meios condutores. Ao mesmo tempo, a técnica tira proveito do fato de que o cérebro é um meio condutor - ele é fundamentalmente um órgão elétrico, que transmite sinais elétricos de uma célula nervosa a outra. Quando a bobina de EMT é ativada sobre o couro cabeludo, um campo magnético muito rápido e poderoso atravessa a pele e o osso. O campo magnético criado é de 2 tesla - medida de magnetismo que corresponde a cerca de 40 mil vezes ao do campo magnético da Terra - mas o tempo de sua duração é muito pequeno, cerca de 150 microsegundos. Esse campo magnético induz a passagem de uma corrente elétrica de baixa intensidade através das células nervosas, forte o suficiente, porém, para ativá-las. A aplicação com a bobina em forma de oito, usada na terapia de Maria, produz um campo magnético bem focalizado que ativa os neurônios mais superficiais do cérebro, que estão a cerca de 2 ou 3 centímetros de profundidade, numa área de cerca de 6 centímetros quadrados. A idéia de ativar a função neural através de campos eletromagnéticos vem desde o início da década de 1900, mas a partir de 1985 a técnica passou a ser usada amplamente, depois que o médico Anthony T. Barker e seus colegas da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, criaram uma máquina e a bobina compacta, muito parecida com a utilizada atualmente, capaz de gerar pulsos suficiente breves para gerar a corrente elétrica nas células nervosas. A partir de então a EMT passou a ser usada principalmente para mapear as funções cerebrais e para avaliar o sistema motor humano em indivíduos sãos ou enfermos. E foi durante os estudos de mapeamento cerebral que surgiram as primeiras evidências de que a estimulação magnética poderia atuar sobre o estado de humor das pessoas. Em 1987, Bickford e seus colaboradores perceberam que indivíduos normais que participavam desses estudos apresentavam uma melhora do humor após a aplicação de pulsos repetitivos e rítmicos de EMT. Essas observações levaram vários pesquisadores a estudar aplicações clínicas da EMT repetitiva, ou EMTr, para o tratamento da depressão. Em meados da década de 1990, foram publicados os primeiros estudos com resultados significativos de melhora da depressão severa através da aplicação diária de EMTr no córtex pré-frontal dos pacientes. A depressão está associada a alterações na atividade da área conhecida como córtex pré-frontal, que mantém conexões com estruturas mais profundas do cérebro, associadas às emoções. Vários estudos realizados na década de 1990 mostraram que, no cérebro dos deprimidos, o fluxo sangüíneo e a atividade dos neurônios no córtex pré-frontal do lado esquerdo estão diminuídos e que há uma inversão no padrão de atividade entre os dois lados do cérebro, ou hemisférios cerebrais.
Enquanto Maria recebia a aplicação de EMT, na sala ao lado, Cohen explicou à Reportagem que “na maioria das pessoas normais, canhotas ou destras, o lado esquerdo do cérebro, que é dominante, está mais estimulado. Na depressão isso inverte, o lado direito fica mais estimulado e o esquerdo mais inibido”. A aplicação de EMT pode reverter essa situação de duas formas, dependendo da freqüência com que é aplicada. Séries de baixa freqüência (de 0,9 a 1 Hertz), como a aplicada em Maria, reduzem a excitabilidade; as de alta freqüência (de 5 a 25 Hz) a aumentam. Para tirar o paciente da depressão, pode-se, então, estimular o lado esquerdo, que está inibido nos deprimidos, ou inibir o direito, o que provoca a excitação reflexa do lado esquerdo. Como durante as primeiras experiências, quando ainda não estavam estabelecido os padrões seguros de aplicação, o tratamento com alta freqüência provocou alguns episódios de convulsão, os médicos aplicam preferencialmente séries de baixa freqüência no hemisfério direito. “Quando o paciente não responde a elas a gente passa a estimular diretamente o hemisfério esquerdo com alta freqüência”. O risco de convulsões é, no entanto, pequeno. “Desde que os parâmetros de intensidade e freqüência foram estabelecidos, em 1996, não houveram novos relatos de sua ocorrência”, diz Cohen. Apesar da comprovação dos benefícios da EMT para o tratamento da depressão, não se conhece exatamente quais os mecanismos que os provocam. Há estudos que evidenciam o aumento do fluxo sangüíneo e da atividade dos neurônios do córtex pré-frontal após a estimulação magnética e, ao que tudo indica, esses benefícios perduram por algumas horas. Uma hipótese é que esses fatores poderiam revigorar os neurônios debilitados pela depressão e atuar na promoção do desenvolvimento de novas conexões entre os neurônios - as sinapses. Essa hipótese, se confirmada, dará à EMTr um papel muito mais amplo, pois o estabelecimento de novas conexões neuronais está na base de comportamentos como aprendizagem e memória. “A chance de podermos usar a estimulação magnética do cérebro para alterar os circuitos neuronais [...] fascina muitos pesquisadores”, escreveu psiquiatra e neurologista Mark George, da Medical University da Carolina do Sul, nos EUA, na edição de setembro de 2003 da Scientific American. “Se pudermos empregar as técnicas de EMTr para mudar o aprendizado e a memória reesculpindo os circuitos cerebrais , as possibilidades são quase infinitas.” Para ele, em teoria , a EMT poderia ser uma terapia útil para qualquer desordem neuronal envolvendo comportamento disfuncional num circuito neural. Estão em andamento várias pesquisas para tratar doenças como o transtorno obsessivo-compulsivo, esquizofrenia, mal de Parkinson, dor crônica, epilepsia. A falta de conhecimento dos mecanismos de ação da EMT não impedem, entretanto, que se aproveite seus benefícios já comprovados. Aliás, é assim que ocorre grande parte do avanço da medicina. A maioria dos remédios disponíveis atualmente foram para o mercado muito antes de que se conhecessem os mecanismos fisiológicos sobre os quais atuam. E, para o tratamento da depressão, a EMTr tem várias vantagens: é um tratamento não invasivo, indolor e com poucos efeitos colaterais - algumas pessoas apresentam dor de cabeça após a aplicação. Por isso ela é uma importante aquisição; principalmente para aqueles pacientes com depressão severa e que, como Maria, são refratários aos medicamentos antidepressivos, pois anteriormente contavam apenas com a terapia eletroconvulsiva - conhecida como eletrochoque - como tratamento. A terapia eletroconvulsiva já foi tema para “sala de horrores” e muito dos preconceitos que pairam sobre ela remetem aos tempos em que era aplicada sem nenhum preparativo. Atualmente ela inclui vários cuidados prévios. O paciente recebe anestesia geral para não sentir a dor provocada pela descarga elétrica no couro cabeludo, e relaxantes musculares que impedem os movimentos bruscos dos membros, característicos da convulsão e que podem provocar ferimentos. Nessas condições, são colocados nas têmporas do paciente dois eletrodos que transmitem uma descarga elétrica muito forte, capaz de ultrapassar a resistência do osso craniano e induzir a corrente elétrica por todo o cérebro, ainda forte o suficiente para desencadear a convulsão. Apesar de ter efeitos colaterais como desconforto físico, perda de memória, e confusão mental, geralmente temporários, e dos riscos inerentes à anestesia geral, a terapia eletroconvulsiva é bastante utilizada por sua eficiência - entre 80 e 90% dos pacientes apresentam melhora no quadro depressivo, chegando a bater os antidepressivos que ajudam entre 60 a 70% dos casos. As vantagens da EMTr sobre ela são evidentes. No tratamento com EMTr, o paciente também é acompanhado por um psicoterapeuta. Como diz Roni Cohen, “todos os registros, quer sejam emocionais ou pensamentos, se processam na forma de mudanças estruturais das células neuronais. Por isso, ao atuar sobre esses engramas também se atua sobre os processos bioquímicos envolvidos na depressão.” Maria, que faz terapia desde 1999, pensa da mesma forma, apenas expressa de outra maneira: “Com a terapia tenho aprendido a conviver com uma doença difícil que detona não apenas a pessoa que sofre de depressão, mas também relacionamentos, condição material, auto-estima. É preciso aprender a lidar com a depressão, a reconhecer os sinais de quando está surgindo de novo e acionar outras respostas que não as já conhecidas pelo deprimido.” Esses aprendizados refletem as mudanças estruturais das células e do circuito neural de que falou o médico. A depressão de Maria é crônica, recorrente e refratária a medicamentos. Ela conta que nesses três anos de tratamento com EMTr e psicoterapia o número de episódios depressivos diminuíram e agora, quando ocorrem, são mais brandos, melhorando com o aumento de aplicações de EMT. Há relatos no entanto de pacientes que melhoraram e se curaram da depressão com cerca de 15 aplicações. Maria confessa que “às vezes tem medo”. Mas o motivo de seu medo é surpreendente: ”Tenho medo de que meu cérebro se acostume com a terapia e passe a não responder mais às aplicações. O médico me diz que isso é infundado, mas tenho medo de precisar voltar a tomar remédio”. E chega a sonhar: “acho que um dia vão inventar uma bobina dessas portátil e as pessoas com depressão recorrente vão poder fazer as aplicações em casa, como os diabéticos injetam a sua insulina”.
EMT versus Antidepressivos A aversão de Maria aos antidepressivos está associada ao desconforto provocado pela troca sucessiva de medicamentos, que a impediam de manter uma vida normal. “Tive de sair de licença [do trabalho] algumas vezes porque para fazer uma troca de remédios geralmente era preciso ficar um tempo sem tomar nada. Aí a depressão voltava com tudo, os efeitos da retirada do remédio eram terríveis e, além de tudo não tinha nenhuma certeza a respeito da eficácia dos novos remédios”. No amplo quadro da doença descrito por Andrew Solomon em O demônio do meio-dia, uma anatomia da depressão (editora Objetiva, 2002), ele diz poder testemunhar a respeito do “inferno que é este jogo de erros e acertos. Tentar diferentes medicações faz você se sentir um alvo para dardos. [...] Os remédios às vezes fazem milagres, mas nunca é fácil e os resultados são inconsistentes”. Mesmo assim, ele considera que os remédios permitiram que ele retomasse uma vida melhor. E há inúmeras pessoas que resolveram suas depressões com o uso das pílulas. Roni Cohen considera que a EMTr não vai substituir os antidepressivos. Ela é uma técnica que requer um aparato que nem sempre está disponível. No Brasil apenas o Hospital das Clínicas, em São Paulo , a Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, e a clínica particular do próprio médico possuem o equipamento. Além disso, ela exige a movimentação do paciente até a clínica durante uns dez ou vinte dias, o que pode não ser fácil para um deprimido. Mas ele considera que seu uso poderá beneficiar o grande contigente de pessoas que não respondem aos remédios. E concorda com o médico norte-americano Mark George sobre a falta de um patrocinador da técnica à altura do poderio das empresas farmacêuticas impede que a EMT atinja esse público em sua plenitude. “A indústria farmacêutica tem um poder de pressão muito grande, a ponto de influenciar a conduta dos pesquisadores”, diz ele. Nos EUA, onde a técnica ainda é experimental, há um debate sobre a suficiência das evidências dos benefícios da EMT para uso clínico no tratamento da depressão. George considera que a técnica ainda não foi aprovada pela FDA, principalmente porque “não existe uma indústria comercial capaz de promover a EMT como uma terapia antidepressiva”. As máquinas de EMT custam entre 30 e 40 mil dólares e são produzidas por quatro empresas, duas norte-americanas, uma dinamarquesa e outra no Reino Unido.